Sumaúma - https://sumauma.com/a-natureza-levou-mais-vida-a-volta-grande-do-xingu-e-belo-monte-agora- - 27/02/2025
A Natureza levou mais vida à Volta Grande do Xingu - e Belo Monte agora quer de volta
Uma tempestade derrubou as torres de transmissão, obrigando a Norte Energia a libertar mais água, e as peixas entenderam que era hora de reproduzir. Mas a empresa entrou na Justiça contra determinação do Ibama de manter o nível do Rio e ganhou, o que pode causar mais um desastre ecológico
Rafael Moro Martins, Altamira, Pará, Brasília,
Eliane Brum, Pablito Aguiar
27 fevereiro 2025
A sequência de acontecimentos começou por volta das 10 e meia da noite de 22 de janeiro. Uma forte tempestade, evento cada vez mais comum em tempos de emergência climática, derrubou cinco torres do Travessão do Surubim, uma linha de transmissão de energia elétrica que corta Anapu, no sudoeste do Pará. Os milhares de quilômetros de cabos de aço enviam boa parte da energia produzida na Floresta Amazônica pela controversa Usina Hidrelétrica Belo Monte ao Sul e Sudeste do Brasil. Para não sobrecarregar as linhas que seguiram funcionando, a Norte Energia, empresa concessionária da usina, interrompeu a agem da água do Rio Xingu por quatro das 18 turbinas de Belo Monte. Com parte da produção paralisada e muita água represada, nos dias seguintes os operadores da hidrelétrica precisaram abrir o vertedouro da barragem de Pimental, libertando mais água para a Volta Grande do Xingu, uma das mais biodiversas regiões da Amazônia e a mais afetada pela barragem. E então a Volta Grande inundou como não se via fazia muito num mês de janeiro. A vida, estrangulada por Belo Monte, deu sinais de recuperação. Peixes encontraram caminhos até os sarobais, uma vegetação baixa e cheia de árvores frutíferas, e encheram os canais de piracema que usam para pousar suas ovas em trechos sem correnteza do Xingu. A Natureza derrubou as torres, a empresa foi obrigada a libertar a água e a vida se impôs para criar mais vida.
Uma das torres que caíram no Travessão do Anapu, no Pará, e obrigaram a Norte Energia a reduzir a produção em Belo Monte e mandar mais água para a Volta Grande do Xingu. Foto: Reprodução Bom dia Pará/TV Globo
"Fazia seis anos que não víamos tanta água nessa época", diz Josiel Juruna, uma das lideranças da Terra Indígena Paquiçamba, localizada na margem esquerda da Volta Grande. "Muito Trairão, Curimatá, Traíra e Surubim conseguiu entrar nas piracemas, um canal onde no final tem uns lagos que servem de berçários, e botar suas ovas", explica o Indígena do povo Yudjá-Juruna, pesquisador do Monitoramento Ambiental e Territorial Independente da Volta Grande do Xingu. O Mati-VGX pesquisa os impactos de Belo Monte a partir dos conhecimentos tradicionais de povos Indígenas e Ribeirinhos, com o apoio de alguns dos mais reconhecidos cientistas de universidades e institutos de pesquisa brasileiros.
Josiel Juruna, pesquisador Indígena do Monitoramento Ambiental e Territorial Independente da Volta Grande, com Belo Monte ao fundo. Foto: Wajã Xipai/SUMAÚMA
Em 13 de fevereiro, porém, as torres de transmissão do Travessão do Surubim foram recuperadas. A água que por vários dias alimentou a vida já podia voltar a produzir lucros e energia. "Se essa água baixar, mesmo esse pouco de peixe que conseguiu se reproduzir, vai tudo morrer", preocupa-se Raimundo da Cruz e Silva. Pescador e Ribeirinho que vive num dos trechos da Volta Grande mais afetados pelo barramento do Xingu, ele também integra o Mati-VGX e sabe explicar, como poucos, as mudanças que afetam pessoas humanas, bichos, plantas e fungos na região. "As Curimatãs estavam com os ovários cheios, prontos para desovar. Elas entenderam que era o momento e entraram nas poucas piracemas que foram repentinamente alagadas por esse pico de inundação. E uma boa parte delas conseguiu desovar", diz Jansen Zuanon, professor aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o Inpa, um dos mais respeitados especialistas em peixes amazônicos do mundo e também integrante do Mati-VGX. Se a água baixar, haverá uma imensa mortandade de embriões e alevinos.
A decisão sobre o destino da vida na Floresta está em disputa entre servidores públicos, engravatados e seus advogados em Brasília e Altamira, no Pará. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, o Ibama, determinou em ofício que se mantenha a inundação inesperada até pelo menos meados de março, para que os alevinos nascidos das ovas que eclodiram nas piracemas possam se desenvolver e chegar ao Rio Xingu. A Norte Energia, a empresa privada que opera Belo Monte, não aceitou esperar: foi à Justiça, alegando "graves prejuízos devido [à] significativa redução de geração no período" e "danos de cerca de 16 milhões de reais por mês" se precisar manter o volume atual de água na Volta Grande. Em uma decisão provisória bastante confusa, o juiz deu razão à Belo Monte, mas o Ibama e o Ministério Público Federal, o MPF, vão recorrer.
Na recomendação do Ibama, a determinação para que a Norte Energia mantenha o nível da água para permitir a reprodução dos peixes. Foto: Reprodução
O procurador-chefe da Procuradoria da República no Pará, Felipe de Moura Palha e Silva, afirmou a SUMAÚMA: "O Ministério Público Federal obteve informações técnicas que recomendaram intervenção imediata para evitar uma escalada de danos caso ocorra alteração das condições ambientais estabelecidas e necessárias para a continuidade dos processos reprodutivos que eclodiram com a recente ampliação do fluxo hídrico do Xingu. Há uma situação extraordinária criada e o alerta é de risco de que milhares de ovas morrerão no seco, em um ambiente que vem há anos sofrendo com os impactos não mitigados da usina de Belo Monte".
Se nada mudar, a Volta Grande do Xingu será palco de mais uma catástrofe ambiental, com a morte ainda nas ovas de milhões de peixes e a consequente insegurança alimentar de comunidades Indígenas e Ribeirinhas.
Dona da água?
Em 28 de janeiro ado, a Norte Energia enviou um documento ao Ibama relatando o que havia ocorrido após a queda das torres no Travessão do Surubim. Com o corte de parte da produção, além "das altas afluências verificadas e previstas para o reservatório Xingu, [...] fez-se necessária a aplicação de taxa de variação de defluências [escoamento] maiores que as previstas na outorga". O documento prossegue: "Dessa forma, após a prévia comunicação à população do TVR [Trecho de Vazão Reduzida, termo burocrático usado para tratar a Volta Grande do Xingu após o barramento do Rio], o incremento da vazão horária ou de 100 metros cúbicos por segundo para 300 metros cúbicos por segundo em algumas horas dos dias 24 e 25 de janeiro, e as variações de vazão total nesse trecho foram superiores aos atuais limites".
Em português claro, a empresa relatou que, com água demais represada, precisou libertá-la em volumes maiores que os autorizados num documento chamado outorga. Emitido pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, a ANA, ele determina quanta água a Norte Energia pode retirar do Xingu para produzir eletricidade. A outorga deu origem a dois hidrogramas que são alvo de disputa e questionamentos por comprovadamente ameaçar a vida na Volta Grande e afetar a segurança alimentar das comunidades humanas e mais-que-humanas. Como está hoje, a outorga "fornece bastante liberdade de uso da água pela hidrelétrica", explica André Oliveira Sawakuchi, professor titular do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, a USP, autor de pesquisas sobre os impactos de hidrelétricas em rios da Amazônia na biodiversidade local e também colaborador do Mati-VGX. "A água é um bem de uso público e múltiplo. A outorga [à Norte Energia] pode e deve ser contestada. Se a gente detecta problemas maiores do que os previstos, ou se eles superaram o que foi pensado nos estudos de impacto, ela tem que ser revista", reforça Jansen Zuanon.
A frente da Aldeia Mïratu em imagens de 19 de dezembro de 2024 (à esq.) e de 25 de fevereiro de 2025, quando fica evidente o efeito da cheia. Fotos: Josiel Juruna
Sawakuchi e Zuanon são coautores, com seis outros pesquisadores de renome, de uma nota técnica produzida em 4 de fevereiro para o Ministério Público Federal sobre a cheia inesperada na Volta Grande. O documento conclui que a Norte Energia "violou sistematicamente os limites estabelecidos na outorga e expôs as populações do TVR [Trecho de Vazão Reduzida] a riscos à sua integridade física e de perdas materiais, além de ter provocado efeitos deletérios [prejudiciais] à fauna aquática e sua reprodução". Isso porque, logo após a cheia repentina, verificou-se que "um rebaixamento de 24 cm [centímetros], após rápido aumento do nível [do Rio], provocou a morte de grande quantidade de desovas e consequente falha no processo de reprodução de peixes".
É algo que Zuanon descreve como "um sobe e desce imprevisível, que cria uma confusão enorme para os peixes": eles entram para as piracemas, mas a água desce e as desovas acabam sobre a terra seca. Uma tragédia que Raimundo viu acontecer perto de sua casa: "Muitas ovas ficaram no seco. Exalava um fedor de carniça, de peixe podre. É muito triste pensar que cada pedaço daquilo era um peixe, uma peixa que ia te servir de alimento, fazer a evolução do Rio de novo". Por essa razão, os cientistas de universidades que assinam a nota técnica do MPF enfatizam "a urgência de intervenções para evitar eventos de oscilações abruptas do nível da água no TVR, especialmente os rebaixamentos de nível durante o período de reprodução dos peixes".
Ovas que acabam na areia - onde jamais vão eclodir - do leito de piracema após a redução do nível do Rio Xingu. Fotos: Josiel Juruna
Eles também observam que Belo Monte foi originalmente projetada para ter dois vertedouros. Vertedouros são uma espécie de sistema de segurança de usinas como Belo Monte a ser aberto quando o nível de água acumulado pela barragem sobe muito. Um deles, jamais construído, seria capaz de lançar água num trecho artificial de rio chamado canal de derivação. Em 2011, ele foi simplesmente excluído do projeto, o que, na análise dos cientistas que assinam a nota, "sugere importância secundária atribuída ao gerenciamento de riscos socioambientais, privilegiando critérios econômicos". A operação com um único vertedouro "implica em insegurança permanente das populações, territórios Indígenas e ecossistemas", afirmam. Trata-se de um cenário "agravado pelo atual contexto de mudanças climáticas, que aumenta a frequência de ocorrência e a intensidade de eventos extremos com efeitos diversos e ainda pouco compreendidos, tal como o que ocasionou a queda das torres". Por sua vez, a queda das torres "evidencia que a infraestrutura de transmissão de energia é vulnerável às novas condições climáticas e que danos podem gerar uma cascata de efeitos negativos para a segurança socioambiental" da Volta Grande.
Diante de todas as evidências, no final da tarde de 14 de fevereiro, uma sexta-feira, o Ibama enviou um documento à Norte Energia. Citando a "variação abrupta do nível da água [que] ocasionou impactos à ictiofauna [conjunto de espécies de peixes] e sua reprodução", cuja eventual repetição poderia "ocasionar novos eventos de perda de desovas e alevinos nas piracemas", o ofício assinado pela diretora de Licenciamento Ambiental, Claudia Jeanne da Silva Barros, determinou que "a Norte Energia mantenha o nível da água atual até final do período de defeso [em 15 de março] e evite o rebaixamento abrupto da vazão, de forma a impedir novos danos socioambientais".
Diante da determinação do Ibama, baseada nos princípios da cautela e da prevenção que orientam o direito ambiental, a Norte Energia recorreu à Justiça.
A Norte Energia reclama de prejuízo mensal de 16 milhões de reais em ação que moveu para não precisar respeitar a reprodução de peixes no Xingu. Foto: Reprodução
A rápida resposta do juiz
Numa reclamação judicial de 56 páginas apresentada na segunda-feira seguinte, 17 de fevereiro, a Norte Energia afirma estar impedida de usar as águas do Rio Xingu da forma autorizada pela outorga da Agência Nacional de Águas, "não obstante já tenha condições operacionais para tanto, o que já causa graves prejuízos", inclusive "para todo o Sistema Interligado Nacional" de energia elétrica. Argumenta ainda estar impedida de gerar "20% da capacidade da maior usina hidrelétrica 100% nacional, com grave risco à segurança energética do país".
O documento é assinado por Julião Silveira Coelho e cinco outros advogados de seu escritório, que é um dos maiores especializados em direito empresarial do país e funciona numa imponente e moderna casa no Lago Sul, o bairro mais caro de Brasília. A casa, recém-reformada, venceu um prêmio internacional de arquitetura em 2022 graças, em parte, a atributos como a reutilização da água da chuva e o uso de energia solar. Um dos advogados que assinam a peça da Norte Energia, Luís Felipe Salomão Filho, é filho de um ministro do Superior Tribunal de Justiça, o STJ. Eles argumentam que o Ibama "afronta a outorga expedida pelo órgão competente", a Agência Nacional de Águas.
Em Altamira, o caso desembarcou nas mãos do juiz federal Leonardo Araújo de Miranda Fernandes. Dois dias depois, em 19 de fevereiro, numa decisão em que afirma fazer um "juízo de ponderação entre a segurança energética nacional, a necessidade de gestão eficiente dos recursos hídricos e a preservação ambiental", ele acolheu o pedido feito pela Norte Energia. O juiz decidiu sem sequer levar em conta um pedido do Ibama por cinco dias de prazo para apresentar seus argumentos. A sentença, de oito páginas, tem erros de digitação no número de um processo do Supremo Tribunal Federal que tratou de Belo Monte e na abreviação do termo Trecho de Vazão Reduzida, indicações de que não foi revisada com cuidado.
O Ibama vai recorrer. "Nos últimos anos, foram poucas as oportunidades de piracemas que deram certo dentro da Volta Grande do Xingu. Principalmente pela pouca quantidade de água ou pelo excesso em curto intervalo de tempo. [Agora] estávamos pedindo apenas para que nas próximas semanas as manobras sejam feitas com cuidado, sem a retirada da água de forma abrupta, para que os peixes possam ser preservados", diz o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho. "Na região está chovendo muito e até o momento não houve nenhuma redução na geração de energia por conta do Ibama. O papel da instituição é justamente garantir que a produção de energia possa acontecer respeitando limites da própria Natureza. Lamentamos essa decisão."
O Ministério Público Federal, que questiona a maneira como Belo Monte usa a água do Xingu em ação judicial, também finaliza um recurso. A nota técnica elaborada a pedido do MPF por cientistas a respeito do incidente de janeiro alertou sobre "as grandes incertezas em relação à operação de Belo Monte e a necessidade contínua de revisar e definir critérios que garantam a vida na Volta Grande do Xingu". Resta saber se haverá tempo para que eles cheguem antes que a Norte Energia, autorizada pela Justiça, comece a desviar mais água para suas turbinas.
No alerta dos cientistas ao Ministério Público Federal, as 'grandes incertezas' sobre Belo Monte e as ameaças à vida na Volta Grande do Xingu. Foto: Reprodução
Quando assinou a sentença, o juiz Leonardo Fernandes dividia seu tempo entre a subseção Judiciária de Altamira - onde corre a ação da Norte Energia - e uma Vara Federal em Boa Vista, capital de Roraima. Para ir de uma cidade a outra, é preciso tomar ao menos dois voos comerciais, com parada obrigatória em Belém, ou encarar uma viagem de quase 3 mil quilômetros, boa parte deles sem asfalto. Em Altamira, uma das cidades mais violentas do Brasil, com penetração crescente do crime organizado, os postos de juiz federal titular e juiz federal substituto estão vagos desde agosto de 2024, quando Fernandes foi enviado a Boa Vista, e sem previsão de preenchimento.
A Justiça Federal do Pará informou que "há concurso em andamento" para preencher as vagas desocupadas em Altamira e que "os processos das duas unidades judiciais são eletrônicos, permitindo o trabalho remoto". Afirmou, ainda, que "durante a gestão do Dr. [sic] Leonardo Fernandes, a Vara Federal de Altamira recebeu a mais alta certificação do Conselho Nacional de Justiça, o selo Diamante, premiação inédita para a unidade", por sua eficiência. Informou, por fim, que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o TRF1, "é o órgão responsável pela designação de magistrados e controle de vacâncias". SUMAÚMA enviou perguntas sobre a situação ao TRF1, mas a assessoria do tribunal limitou-se a dizer à reportagem para remeter as questões à Justiça Federal do Pará.
O acúmulo dos cargos pode ajudar a explicar os vencimentos do juiz Fernandes. Em janeiro de 2025, ele recebeu quase 141 mil reais líquidos, segundo o portal da transparência do Conselho Nacional de Justiça. Ao salário-base, de quase 38 mil reais, foram acrescidos 67,5 mil reais em "direitos eventuais" e quase 53 mil reais em "indenizações". Desde agosto ado os ganhos mensais dele ultraam 40 mil reais - por duas vezes, somaram mais de 100 mil.
O juiz federal Leonardo Araújo de Miranda Fernandes, que decidiu a favor de Belo Monte, em vídeo de curso jurídico. Foto: Reprodução/YouTube Estratégia Carreira Jurídica
É uma situação comum no Judiciário brasileiro, como demonstram séries de reportagens publicadas nas últimas semanas. SUMAÚMA pediu à Justiça Federal do Pará que detalhasse o que são os "direitos eventuais" e "indenizações" pagas - com dinheiro público - ao juiz Fernandes. Ouviu, como resposta, que os vencimentos estão "em conformidade com a legislação vigente" e são "sujeitos ao controle dos órgãos competentes". SUMAÚMA também pediu, por email, uma entrevista com o juiz. A Justiça Federal do Pará informou que "o posicionamento do magistrado sobre o tema já está devidamente registrado no próprio teor da decisão".
A Norte Energia afirmou que não iria responder às perguntas enviadas pela reportagem por email e aplicativo de mensagem.
Hidrogramas sem consenso: o ponto estratégico da disputa
As 56 páginas da ação movida pela Norte Energia para ser autorizada judicialmente a descumprir uma determinação do Ibama baseada na cautela e na prevenção podem causar surpresa a quem não acompanha os impactos da hidrelétrica na Volta Grande do Xingu. A questão não se resume a uma disputa pontual pelas águas de um dos maiores afluentes do Rio Amazonas, mas sim a uma disputa que se arrasta há anos sobre a quantidade de água que a usina pode retirar da Volta Grande sem causar um ecocídio. Nos últimos anos, os impactos ambientais têm sido robustos e fartamente documentados, afetando várias espécies de mais-que-humanos e comprometendo a segurança alimentar e o modo de vida de comunidades tradicionais cuja ocupação, no caso dos Indígenas, remonta há milênios.
"Hidrogramas de consenso" é o termo usado na ação pelos advogados da Norte Energia. Mas nunca, em tempo algum, houve consenso sobre as quantidades de água estipuladas nos hidrogramas A e no B, como SUMAÚMA apontou em diversas reportagens. O hidrograma A teria impactos tão avassaladores que jamais foi aplicado. O B tem sido usado pela usina, mas comprovadamente impede a reprodução dos peixes e outras espécies da Volta Grande do Xingu, impactando o modo de vida não só de Indígenas e Ribeirinhos, mas de todos os seres vivos da região. Ambos os hidrogramas são objeto de uma ação civil pública do Ministério Público Federal.
Neste momento, a renovação da licença de operação de Belo Monte está na mesa do Ibama, que deverá decidir também sobre a quantidade de água. Esse pode ser o temor da Norte Energia ao operar uma hidrelétrica que foi imposta e construída com um valor muito mais alto do que o previsto e contra as conclusões de alguns dos cientistas mais reconhecidos do Brasil, que apontavam a magnitude dos impactos da usina em comparação à produção de energia num rio de comportamento sazonal, que seca por metade do ano. A construção de Belo Monte subestimou ainda os impactos do colapso climático, que nos últimos dois anos produziu na região do Médio Xingu - e na maior parte da Amazônia - as mais severas secas já registradas, o que também compromete a geração de energia.
André Oliveira Sawakuchi (à esq.) e Jansen Zuanon, cientistas especializados na região amazônica. Fotos: Sherilyn Fritz e Gabriel Bassen
Não são duas visões de mundo em disputa, como às vezes é apresentado. A possibilidade de converter a Volta Grande do Xingu numa zona de sacrifício, como vem acontecendo, é inconstitucional. "A grande briga é para que pelo menos o ritmo e parte do volume de água na Volta Grande mimetizem e mantenham o padrão histórico, que evoluiu ao longo de milhões de anos", ressalta Jansen Zuanon. "A gente tem que pensar modelos de geração de energia elétrica que respeitem as condições naturais do meio ambiente, que preservem os ciclos naturais. É preciso que o rio suba no momento adequado, permaneça cheio por um certo tempo e vaze. Hoje, o que determina quanta água é liberada para a Volta Grande é a demanda [por energia] no Sul e Sudeste do país, que consomem a maior parte da energia [gerada no Brasil]. As consequências negativas ficam para quem vive na região", afirma o cientista.
A decisão do juiz não altera a disputa pelo hidrograma a ser aplicado por Belo Monte. Mas, ao autorizar a Norte Energia a desobedecer uma determinação do principal órgão ambiental do Estado brasileiro - e sem ouvi-lo antes de decidir, o que é pouco usual -, o juiz fortalece a posição da empresa.
Direito à existência coletiva
Tão distantes dos luxuosos escritórios de advocacia e do imponente escritório da Norte Energia em Brasília quanto dos altos salários dos juízes que decidem as suas vidas, Ribeirinhos, povos Indígenas e povos mais-que-humanos da Volta Grande do Xingu são obrigados a lidar com as consequências das decisões dos homens de terno.
Raimundo da Cruz e Silva, Ribeirinho e pescador, com régua usada para monitorar a piracema na comunidade do Rio das Pedras, em Anapu, Pará. Foto: Soll/SUMAÚMA
"A vida da gente é envolvida no Rio. Que era maravilhoso: a gente trabalhava no roçado, durante o dia, e aí de tarde saía pescar e voltava com o jantar e o almoço de amanhã", relembra Raimundo da Cruz e Silva. Até que a barragem de Belo Monte começou a subir. "Em 2019, quando fechou a última comporta, a coisa começou a pegar. O Rio foi diminuindo, diminuindo... Só ficou a lembrança. Quem não viu nunca vai saber como era. A reprodução de peixes, temos certeza, já caiu uns 80%. O Rio Xingu, na Volta Grande, está morto."
Raimundo, que há mais de 30 anos pesca na Volta Grande do Xingu, sabe que não há futuro para a vida na região se a água não chegar na quantidade necessária - e também muito antes do que tem chegado. Depois de Belo Monte, "quando vai dar uma cheia, é em março, abril". Mas aí já é final do período de defeso, que acaba em 15 de março. E o pescador, que compreende o funcionamento do Rio, sabe que a maioria dos peixes termina seu período reprodutivo em meados de fevereiro.
"Eles roubaram a água da Volta Grande. E, por causa disso, a Volta Grande perdeu vegetação, perdeu diversidade, e nós perdemos nosso modo de vida, nossa alimentação. Hoje o pessoal come enlatado, come mortadela, em vez do peixe, que era a alimentação dos Ribeirinhos. Comprar a mistura [proteína]: isso é uma coisa que não tinha no nosso vocabulário", se entristece Raimundo. Ele conversou com SUMAÚMA na cidade de Altamira, a 80 quilômetros de sua casa, aonde tinha ido para comprar comida - coisa que, até Belo Monte existir, nunca tinha precisado fazer.
Apesar de alegar prejuízos para manter o nível da água compatível com a reprodução dos peixes, a empresa concessionária de Belo Monte comunicou que ele subirá nas próximas duas semanas. Foto: Reprodução
Em Brasília, a quase 2 mil quilômetros dali, um debate promovido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, reuniu na noite de 25 de fevereiro um grupo de juristas num auditório da Universidade de Brasília. Discutiam-se decisões políticas e judiciais que ameaçam os povos Indígenas e outros povos da Floresta. Um deles, o jurista Carlos Frederico Marés, que presidiu a Fundação Nacional dos Povos Indígenas, a Funai, de novembro de 1999 a abril de 2000, fez uma análise precisa: "A discussão do direito Indígena é a discussão do direito à existência coletiva de povos. Os povos Indígenas impam ao direito moderno essa categoria. O corolário óbvio disso é o lugar. O direito de existir dos povos Indígenas é o direito de existir dos outros seres do lugar. É tão fácil entender isso. Mas é fácil para o Direito entender isso? Eu diria que beira a impossibilidade. Como um jurista moderno vai entender o direito de existir de um coletivo que é mais-que-humano?". Ele não se referia ao caso de Belo Monte - mas a reflexão esclarece o que ocorre na Volta Grande do Xingu.
Apesar de reclamar, na ação protocolada em 17 de fevereiro, de um prejuízo de 16 milhões de reais por mês caso não diminuísse o volume de água destinado à Volta Grande, oito dias depois Belo Monte informou à população da região que o nível do Xingu deverá subir "aos poucos e diariamente pelas próximas duas semanas, em função do volume de chuvas". No site da empresa, em 26 de fevereiro, estava prevista uma vazão natural de 20.105 metros cúbicos por segundo, e a vazão defluente (a quantidade de água liberada) para a Volta Grande era de 10.501 metros cúbicos por segundo. É mais água do que em 14 de fevereiro, quando o Ibama determinou que se mantivesse a vazão. Pelo menos uma pergunta se impõe: por que a Norte Energia alegou grandes prejuízos na ação judicial, mas mesmo com uma decisão favorável da Justiça aumentou o volume de água na Volta Grande do Xingu em vez de diminuí-lo, como afirmava ser urgente?
Enquanto isso, nas últimas semanas, fortes chuvas caem sobre toda a região da Volta Grande. A Natureza, como é habitual, está fazendo mais pela vida do que a humanidade demonstra ser capaz.
Torre de energia sobre o leito do Rio Xingu, ao lado de árvores mortas após a inundação do reservatório principal de Belo Monte. Foto: Lela Beltrão/SUMAÚMA
Reportagem e texto: Rafael Moro Martins, Eliane Brum e Pablito Aguiar
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Bruno Lima
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução em espanhol: Meritxell Almarza
Tradução em inglês: Sarah J. Johnson
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum
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